sábado, janeiro 12, 2008

Posto no olho da rua

(Publicado em Inglês, no blog Facets of Madeira, em 08/01/08)

Ontem, por volta das 20h00, o telefone tocou. O número que apareceu no visor indicou que a chamada vinha de Santa Cruz, onde moramos, mas a voz era estranha e o Português muito carregado. Percebendo a minha confusão, o outro começou a falar em Russo/Ucraniano, o que não ajudou muito, pois não me lembrava de nenhum russo ou ucraniano em Santa Cruz que eu conhecia. A pessoa estava muito perturbada, o que dificultava ainda mais a conversa. Finalmente percebi: era Misha, um dos reclusos ucranianos que assiste às reuniões semanais na prisão.

Mas acabava de estar com ele e mais dois entre as 16h30 e 17h30! Agora, às 20h00, ele me dizia que estava no aeroporto, e nas duas horas desde que o deixei na prisão, ele foi mandado ir à cela, buscar as suas coisas, e ir para casa! Para casa?! Ucrânia...!


Disse-lhe para sentar-se e esperar lá, que eu logo iria buscá-lo. "Sentar" quieto era a última coisa que ele conseguia fazer. Ele estava num estado de choque. Um guarda lhe deu uma boleia até ao aeroporto, mas ele não tinha bilhete, nem reservas, só €300, e um papel do tribunal dizendo que ele tinha 30 dias para abandonar o país e fixar residência na Ucrânia! Misha foi preso no continente e passou 4 anos na prisão lá antes de ser transferido para a Madeira há 2 anos e 7 meses atrás. Ele não conhecia ninguém aqui...nunca trabalhou aqui...nunca viveu aqui. No seu desespero, ligou para mim, a única pessoa que conhece fora da prisão na Madeira.

Estava nervoso e preocupado. Não tinha lugar para passar a noite e não via maneira de chegar em casa. Repetia sempre, "Eu não sabe ninguém...eu não sabe nada aqui", ou "Não posso acreditar. É um sonho." (Cf. Salmo 126:1) No quintal da nossa casa, já de noite e um chuvisco a cair, ele passava as mãos sobre as folhas molhadas dos cardeais... "Há mais de 6 anos que não posso tocar em flores."

Aproveitámos e o levámos num passeio rápido até o Funchal e de volta...ele só tinha visto imagens da ilha na TV, e agora pela primeira vez, era algo real, tangível. Oferecemos o uso do nosso apartamento e eu lhe disse que esta manhã iríamos a uma agência de viagens para arranjar um bilhete.

A caminho do Funchal esta manhã, pareceu-me que os seus olhos não estavam acostumados à luz do sol: ele estava sempre a tapar os olhos. Depois de estacionar, andámos até à agência de viagens. "Faz 6 anos e meio que não ando na rua de uma cidade," quase como dizer que teria que aprender fazê-lo de novo.

Na agência de viagens, nada parecia correr a favor no início. Para os primeiros 30 ou 45 minutos, a únicas opção era esperar mais uma semana para apanhar um voo directo Lisboa-Kiev (€385) ou pagar €590 para ir na 6ª-feira, mas via Alemanha e Polónia. Misha (alcunha de Mikhaylo---Miguel) estava muito desanimado. "Vou ter que voltar à prisão e bater na porta e pedir que me aceitem de novo...estou preocupado."

"Estou muito preocupado," dizia várias vezes.

Por fim, um dos voos directas semanais era hoje à noite, e havia lugar. Ele estaria em Kiev amanhã de manhã, e em casa (500 km de Kiev) até ao fim do dia. O dinheiro? Eu disse-lhe que eu pagaria o bilhete, e ele podia me dar €150, o que lhe deixaria algum dinheiro para a viagem dentro da Ucrânia. "Minha alma está a chorar," ele disse, obviamente emocionado pelo facto que estaria a ver a família amanhã. Suas filhas tinham 4 e 6 anos de idade quando as viu pela última vez quase 7 anos atrás. No telefone, a mais nova lhe tem dito que não se lembra do seu pai. "Eu não sabe o que vou fazer quando ver!" Mais uma preocupação.

Esta tarde no aeroporto, tudo correu bem no check-in. Misha saiu para Lisboa às 16h00, onde teria de esperar umas 5 horas antes de pegar o voo nocturno para Kiev. A esta hora, já deve ter saída, o que significa que dois dos quatro ucranianos no estudo bíblico semanal saíram desde o princípio do ano. Valeriy saiu na semana passada, com o novo Código Penal em vigor a facilitar a libertação de certos reclusos. Mas os dois ucranianos que ainda ficaram não estarão de saída tão logo. Alex e Oleg estão ambos com um pena de 18 anos, e terão de servir metade antes de poder ir embora. Um já está há 5 anos na prisão, o outro só 3. Penso vê-los muitas vezes antes de irem para casa.

Notas:
1) Uma situação semelhante ocorreu em 2005 com Romeo. Foi interessante ver as semelhanças quando re-li o artigo. (Artigo do blog em Inglês, que não foi traduzido para este blog.)
2) Foi Misha que me deu um desenho para Natal no ano passado. Pode clicar aqui para ver uma foto tirada de mais perto. Agora que ele estava na casa de imprevisto, pedi que ele ficasse ao lado da sua obra para eu tirar uma foto. Ele ficou muito acanhado, mas no fim acordou, e aqui está:




Esta manhã, Misha me disse que estudou arte no liceu, pintura, desenho, escultura. Mas como não tinha dinheiro para continuar os estudos a nível superior, fez um curso profissional em soldadura, trabalho de que não gosta nada, mas foi o que podia encontrar. Eu oro que ele não somente continue a trazer no seu coração a Palavra de Deus, mas que Deus permita que ele possa exprimir o seu amor pela beleza e arte de alguma forma quando chegar em casa. Estou resignado ao facto de que provavelmente nunca vamos saber nesta vida o que acontecer na vida de Misha daqui para frente. Não será fácil para ele voltar a uma cultura fortemente ortodoxa e seguir a Bíblia, mas o entregámos ao Senhor para que Ele cuide de Misha. As suas orações são muito apreciadas.

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